segunda-feira, março 29, 2004

Os meus vizinhos

Moro num apartamento pequenino de onde tenho toda a vista oeste de Berlim. Espreita-me a Funkturm. Virei as costas ao leste que sempre teve o problema de não ter costas. É assim quando se fazem muros. As fronteiras são as linhas mais ambíguas de que há notícia. São dos dois lados e dizem que há dois lados. Sou um corpo-fronteira, por ser estrangeira. Movo-me e desenho nesta cidade mapas outros.
O meu edifício contém múltiplos apartamentos, são cerca de 60. Comecei este mês a ter vizinhos. Em frente, descobri um sujeito de cabelos sujos e compridos, camisa aberta a evidenciar pelória, o que muito se coaduna com as temperaturas prussianas, que dirige uma empresa chamada "Inversiones Areales". Imaginei-o de imediato realizador de filmes porno, um dia morto no elevador das traseiras, por causa de umas contas esquecidas e velhas de quando ainda era só dealer. Por via das dúvidas, sorrio-lhe bastante. Ele estica-se na ponta das suas botas em pontas e como num passo de ballet acende-me a luz, triunfante na sua utilidade máscula.
Por baixo, mora uma personagem de Woodie Allen que ainda não toma comprimidos. Bate à porta, com frequência, para me perguntar se comprei uma secretária nova, porque está a ficar doido com o barulho de uma secretária. Se as secretárias emitem sons, barulhos de tal modo irritantes a ponto de raptar o sono aos mais neuróticos, essa é questão ainda por apurar...disse-lhe que não, que dormia no sofá. Ele foi-se embora, sempre acabrunhado, humilhado na sua descoberta falhada da secretária irrequieta.
Sem vista, e precisando sempre de ajuda para pendurar cortinas, todas diferentes, ao longo das inúmeras janelas da sala, vive uma japonesa violinista, com nome de oratória - Missa. Será a Missa Solemnis? Ensaia com destreza as suas peças musicais enquanto eu lhe faço buracos na parede para pendurar mais um estore. Desta feita, foi um branco. Este é melhor, só precisou de 2 buracos. O outro foi de mais demora, três buracos e um encaixe difícil. As coisas do IKEA são tão melhores, quanto mais difíceis forem de montar. As outras, enfim, as outras são só difíceis.
No rés-do-chão vive o responsável pelo prédio, um rapaz que se encolhe de vergonha quando me vê, ainda não percebi porquê. Fica satisfeito quando o trato com deferência para lhe pedir, por favor, que trate de arranjar caixotes do lixo.
Vizinhos ma non troppo, no meu território de fronteiras, em que se ri a minha imaginação, enquanto me esforço por articular esta má desculpa para língua.
Comigo, vive uma alma gémea que também ainda não arranjou nacionalidade.
Somos bolas de berlim sem recheio que, em bom rigor, não são bolas de berlim, mas uma pretensão apenas.


Dr. Jay's