sexta-feira, agosto 13, 2004

O que quer isto dizer?

Interstícios, espaços em branco - afinal, o que é que isto quer dizer?

I. Os buracos nos sistemas
Quando comecei a aprender Kant, mergulhando no complexo sistema das faculdades, que lia na Crítica da Razão Pura debaixo dos olhos austeros de um magnífico professor, perguntei-me diversas vezes de onde vinha aquela espantosa capacidade de o entendimento receber dados da sensibilidade, de os esquemas da imaginação serem tão incrivelmente peças de um puzzle onde tudo parecia encaixar - e onde, afinal, para mim faltavam peças.
Sob pena de já ter perdido os meus dois leitores pelo caminho, continuo. A questão que se colocava era a de haver, por um lado, duas faculdades distintas em jogo (a sensibilidade e o entendimento), quando os dados da primeira eram matéria para a segunda. Que sentido fazia multiplicar as faculdades se elas se alimentavam do mesmo material? E tendo Kant introduzido a imaginação no interior deste processo, para de algum modo dar conta de uma diferença qualitativa mais ou menos obscura entre dados sensíveis e os mesmos dados sensíveis que teriam passado o crivo de esquemas da imaginação, tendo feito isto, não correria o perigo de começar a multiplicar exponencialmente todas as instâncias intermédias, as pontes que permitiam a esta "matéria bruta" circular de A para B, sendo a mesma e sendo diferente?
No fundo, o meu problema era o de compreender de que forma e por meio de que magia se faziam todas as passagens de um processo que nunca se deixava descobrir exactamente como Kant o descrevia. Esses eram, para mim, espaços em branco. Tal como o eram as próprias categorias do entendimento, as engrenagens de um sistema demasiado perfeito para admitir fissuras.

II. Engolir um sapo - ou das harmonias pré-estabelecidas
Chegada à Crítica da Faculdade de Julgar, a última e a mais profundamente obscura das críticas, não havendo possibilidade outra de encontrar soluções, foi o filósofo forçado a admitir uma concordância prévia entre o reino das causas e o reino dos fins, a famosa ideia da harmonia pré-estabelecida, que lhe permitia dançar livremente entre as críticas e as faculdades. Aí, tornou-se evidente que se tratava de uma necessidade extrínseca ao próprio processo que Kant parecia descrever. Uma ficção.
Note-se que a ficção é a forma própria da filosofia até ao séc. XX, pelo menos. E isso não traz em si mesmo qualquer problema. Antes pelo contrário, o sistema kantiano é uma ficção que deu e dá muito que pensar. E que organiza utopias e programas políticos, como o da paz perpétua ou o da união dos povos e das nações.
No entanto, esta ficção, estritamente enquanto tal, sofria da síndrome "queijo suiço" aos meus olhos. E isso feria-a de morte.

III. Descrever
O inventor da cronofotografia, Etiennes Jules Marey, era médico e procurava mapear a fisiologia e a fisionomia dos corpos em movimento. Do mais ínfimo ao maior, dizia. Criou então um sistema que lhe permitia, por meio da fotografia em movimento, encontrar todos os momentos do movimento, desenhando fenómenos que a câmara atestava e que, porém, os nossos olhos não conseguiam captar. O que Marey procurava eram os interstícios dos corpos em movimento. Esses espaços em branco que pareciam escapar-nos sempre. Descrever, fotografando ou filmando, uma realidade física como o movimento significava pois dar conta do real, de todo o real.
A Filosofia, no séc. XX, procura também radicar-se no lugar do cronofotógrafo, de algum modo, através da Fenomenologia. O "regresso ao fenómeno" e a "descrição" pareciam antídotos suficientemente fortes contra a tendência psicologista e pouco científica que grassava, pelo menos no entender do seu fundador, Edmund Husserl, matemático de profissão.
Curiosamente, a fenomenologia volta a tropeçar nos espaços em branco. Procurando descrever os fenómenos da percepção, por exemplo, a pretensa descrição contém novamente os problemas kantianos das pontes, das passagens, problemas esses que pareciam reconduzir-se ao tempo. É porque o presente não se pode definir como sequência que fenómenos como a percepção não podem ser descritos como "primeiro" e "depois". A descrição esbarra na alienação do tempo. E isso torna-a inverosímil. Tal como imagens em "slow motion" se revelam inteiramente novas, inteiramente diferentes daquilo que percepcionamos em "tempo real".

IV. Quantum leap
Havia uma série na televisão que tinha este título. Admitia a velha possibilidade de saltos no tempo, mas agora fazendo apelo à mecânica quântica de que ninguém sabe muita coisa e cuja verosimilhança, portanto, não iria ser posta em causa.
Mas o verdadeiro salto, o verdadeiro espaço em branco, continua na dimensão do tempo. Os romances fizeram-se por isso: forneceram modelos ou esquemas de integração de factos da vida. Factos que não tinham qualquer sentido. Que eram desprovidos de destino, de amor fati. Era porque a vida se tornava insuportavelmente fastidiosa, em tempos de paz e de relativa abundância, que era preciso entreter. O romance, porque toda a ficção é tendencialmente romanesca (e não sou eu que o digo, é Blanchot), tomava conta dessas almas desassossegadas e descontentes que não tinham mais que a sua colecção privada de factos mais ou menos desinteressantes.
Não quero com isto dizer que a narrativa seja uma invenção contemporânea do romance. Isso seria absurdo! O que quero dizer é que a forma do romance vem obviar às dificuldades destes espaços em branco que se tornam cada vez mais resistentes na filosofia como na vida. Os laços entre os factos. Os nós entre as vidas. É isto que os autores se encarregam de construir. Nalguns casos, genialmente.
Hoje, leio e releio continuamente as palavras do escritor Rui Nunes, esse meu professor de filosofia. A literatura encontra o seu lugar nas fissuras, nas ruínas, nos pedaços de vida de que todos somos feitos - e não procura reconstruir uma monumentalidade qualquer que tivesse sido perdida. Pelo contrário, a literatura, hoje, devolve-nos num ritmo lancinate e entrecortado os ecos desses fragmentos que resistem aos sistemas, às descrições, ou à inscrição no tempo. E se se trata de uma devolução, será que finalmente a ficção é a verdade?

1 Comments:

Blogger João Amaro Correia said...

regresso em GRANDE!
faltaste à festa!
beijo

12:31 da manhã  

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