quarta-feira, setembro 08, 2004

Assuntos do Mar [por Álvaro Domingues, no Público de hoje]

"Ao largo da costa, mais ou menos a cinco milhas, mais milha menos milha, naufragou uma abóbora menina. A bordo ia a Gata Borralheira e três parelhas de cavalos. A Gata não sabia nadar mas como tinha uma fada madrinha, safou-se. Os cavalos afinal eram ratos como se veio a provar depois de um processo aturado de busca onde participaram um submarino, uma fragata e um helicóptero. Pelo registo dos locais onde foram avistados já sem vida, os ratos teriam nadado em espirais até se lhes entupirem os bofes de água. A abóbora menina anda à deriva nas correntes atlânticas, prevendo-se que dê à praia algures em Cancun onde um porta-aviões da marinha dos EUA em substituição de uma aeronave da companhia Yes, está já a postos para a recolher e transportá-la para Guantánamo onde será aberta, analisada e anexada ao processo de recolha de provas da existência de armas de destruição maciça. A Gata, que afirma chamar-se Cinderela, é a única testemunha desta insólita facécia. Detida para interrogatório, afirma não ser magrebina, nem clandestina, nem membro da Organização Mulheres sobre as Ondas. Instada a revelar as circunstâncias que a levaram para o alto mar, a detida insiste em dizer que vinha de um casamento no Meco e que teve medo de se fazer à estrada por excesso da carga alcoólica e opiáceos, tendo preferido a via marítima por sugestão dos Heróis do Mar. Quanto à história dos cavalos, dos ratos, de uma suposta carruagem, de uns sapatos de cristal e da abóbora menina, a detida repete até à exaustão uma história de uma madrasta, de um príncipe apaixonado que anda à procura dela, de um sapato que perdeu e outro que está coberto de lapas, algas e mexilhões, que está em sua posse e que ela ameaça escacar na cabeça de quem lhe tocar. Dada a inconsistência do relato, abriu-se a instrução de um processo que está em segredo de justiça. A dita Cinderela está detida preventivamente no Forte de S. Julião da Barra por falta de licença de mestre de traineira, por consumo de substâncias ilícitas e por posse de arma branca. Desconhece-se o paradeiro da fada madrinha que andará a monte armada com uma varinha com uma estrelinha dourada na ponta. Suspeita-se que a dita seja uma perigosa incendiária que anda nas florestas com uma tocha olímpica que desapareceu de Atenas.
2. Contentores à deriva
Um cacilheiro com três lulas ensarilhadas na hélice embateu com o túnel do metro ao largo do Terreiro do Paço. A força do embate lançou a embarcação à deriva, tendo sido avistada poucos minutos depois a navegar a alta velocidade a noroeste do Farol do Bugio. A tripulação e os passageiros não dão sinal de si. O Ministério da Defesa está a organizar uma busca onde estão envolvidos três vasos de guerra, um vaso de jacintos de água, e uma bóia daquela menina da televisão que diz que a 'paia' é a nossa casa do Verão, não suje o chão. Devido ao agravamento das condições meteorológicas, do nevoeiro e da forte ondulação que se faz sentir no mar português, os meios de busca e salvamento tiveram que regressar, tendo-se perdido o vaso de jacintos de água e a bóia. Passadas duas semanas deu à praia da Berlenga um contentor carregado com Aloé Vera com uma senhora com uma alforreca na cabeça, presa a uma bóia e a um vaso de plástico. A senhora foi detida pela Polícia Marítima para interrogatório por suspeita de contrabando, posse de produtos químicos potencialmente perigosos para a saúde pública e invasão de ecossistemas protegidos. Incompreensivelmente fresca, a senhora diz ser a única sobrevivente do cacilheiro transviado que terá sido engolido por uma baleia de bossa. A detida afirma ter escapado a esse horrível monstro refugiando-se dentro de uma caixa de delícias do mar que o animal expeliu pelas narinas. Depois de uma noite de enjoo e de ser molestada por um cardume de pescadas de rabo na boca, a senhora afirma que se agarrou a uma abóbora menina, tendo conseguido nadar até junto de uma bóia cor de laranja e de um vaso de jacintos de água cheio de ratos afogados, o que lhe permitiu sobreviver até encontrar o contentor à deriva. Foi a minha salvação, disse. Depois de ter encontrado um furinho no contentor fui milagrosamente salva por um líquido viscoso que me serviu de champô, de iogurte, de lava-loiça, de protector solar, de bebida energética, de feijoada à transmontana, de limpa canos, de pudim instantâneo, de detergente e de varinha mágica. Depois de uma peritagem feita pelos Serviços de Protecção Civil, concluiu-se que a varinha mágica não correspondia à descrição da arma em posse da fada madrinha, pelo que a senhora, para já, só foi multada por não ter consigo o BI e o bilhete da viagem no cacilheiro. Visivelmente irritada pelo facto, a Dª Ermelinda, como diz chamar-se, imobilizou os agentes com esguichos de Aloé Vera, debitando impropérios acerca de uma consulta ginecológica a que a queriam submeter para provar a veracidade de supostos comportamentos desviantes e imorais com as pescadas de rabo na boca. Aguardam-se mais desenvolvimentos. A Dª Ermelinda deu de frosques.
3. Batalha Naval
As autoridades policiais desmantelaram uma rede de casas de jogo de Batalha Naval que era organizada por telefone-satélite a partir do Navio Escola Sagres. O caso foi descoberto através de uma intensa rede de escutas telefónicas onde se detectavam mensagens terroristas codificadas juntamente com alusões à destruição de embarcações de guerra e comerciais, do estilo A4, porta aviões ao fundo, P8, submarino ao fundo, K5, porta contentores ao fundo, e assim sucessivamente. A organização, supostamente ligada a redes internacionais e às Tríades de Macau, operava em terra, mar e praias. Devido ao carácter altamente delicado da informação, e por estar em causa a integridade e a segurança da pátria, não foram divulgados nomes. Contudo, uma fuga de informação revelou que a criancinha da 'paia' limpa, 'paia' segura, está implicada no caso e que a pá e o ancinho de plástico que ela manobra furiosamente no reclame da TV não são mais do que sofisticadas antenas que faziam parte da tecnologia avançada de telecomunicações que a rede usava. Suspeita-se também que o contentor com Aloé Vera que resgatou a Dª Ermelinda tenha feito parte da carga de um navio que a rede da Batalha Naval afundou. "


Dr. Jay's