sexta-feira, janeiro 28, 2005

Quem roubou a minha neve?

Eu teria uns cinco ou seis anos, não sei precisar. Uma longa viagem de carro levou toda a família a visitar tios e primas, que viviam onde havia neve. Chegados tarde, a excitação adiada para a manhã seguinte, o reencontro com as primas, a descoberta da neve. Os casacos, uma casa a cheirar a outra família, uma cama improvisada, o sorriso de uns tios que me davam, como se fosse em segredo, colherzinhas de açúcar demolhado em café, o frio, sentir-me numa terra estranha, sacos de plástico sobre as meias, pés dentro de botas de borracha, passe-montagne, e adereços desconfortáveis. A minha mãe fazendo-me umas tranças no meu cabelo rebelde e farto, com um tempo que não era usual e uma descontracção que era terna, a recordação do primeiro trocadilho de que me lembro, a risota, as gargalhadas largas perante um
- ó tia elástica, dá cá mais uma teresa
e eu a perceber o que era um trocadilho, a rir também, como se se abrisse a porta do mundo dos crescidos e eu pudesse espreitar, num instante, enquanto a minha mãe, quase docemente, repuxava os meus cabelos num penteado novo, como aquela ocasião, também nova.
A minha tia
- olha está a nevar
e eu a ver um mistério, a vê-lo como mistério, sem perceber que a neve era o mesmo que a chuva, sem perceber nada disso, apenas reconhecendo pequenas películas brancas a dançar ali, à minha frente.
Mais tarde, em plena serra, num saco de plástico cor-de-laranja, daqueles antigos bem fortes, com a ajuda de uma prima, guardámos neve qb para brincar em casa. Acreditávamos ambas que a neve era outra coisa, uma substância única, mágica, branca, fofa, que se podia guardar para brincar mais tarde. Perante o desaparecimento da neve que jazia na banheira, uma enorme tristeza e a primeira investigação conjunta da minha história
- quem roubou a nossa neve?


Dr. Jay's