quarta-feira, janeiro 12, 2005

Zoologias 2

A dona Órora:
espécie autóctone, aparência discreta e modesta, saia travada, blusa florida, sapato prático, utente dos transportes públicos (à excepção do metro, porque tem medo de uma "catástorfe"), passe social, cartão do idoso. Quarta classe feita no tempo em que se ensinava a escrever e a contar como devia ser, com a menina dos olhos ali à vista de todos, mas derivado a ter que trabalhar para ajudar os pais, fez-se costureira aos 10 anos. Tinha um irmão que como era esperto foi para padre, para poder estudar. A mãe tinha uma vaca. O pai, uma pouca de terra, mas trabalhava numa fábrica como fundidor.
Gosta de ler a Maria, a TV Sete Dias e a Caras. O seu programa favorito foi a Quinta das Celebridades. Aflige-se muito com as "catástorfes" que vê no telejornal da TVI. Acha que a Manuela Moura Guedes é uma senhora muito fina e esperta. Também gosta de ver o Herman. Gostava muito do Carlos Cruz, mas acha que ele é culpado. Não acredita que se faça justiça, porque ele é um homem rico e compra bons advogados.
Nunca foi ao estrangeiro. A coisa mais bonita que viu foi o Algarve. Vai à terra de tempos a tempos, onde tem uma "casita" que lhe ficou dos pais. Faz renda a tempo inteiro, para vender às vizinhas. Quando não, dedica-se aos arranjos de costura.
A sua profissão é funcionária pública. Derivado a ter uma madrinha em Lisboa, foi para a cidade aos 12 anos, servir numa casa de uma família rica, que lhe arranjou depois, com boa vontade, um lugar de contínua numa Faculdade de Letras. Casou com um moço que era lá da terra, o Joaquim, que era metalúrgico.
Fizeram-na, a alturas tantas, responsável por um centro onde se guardavam documentos, parece que coisas muito importantes da História. Para ela, era só papel e pó. Mas havia para lá aquelas porcarias da revolução pelo meio, e ela desejou muito reformar-se, porque os bons tempos foram os de antigamente. Até se pôs doente.
Sofre dos nervos e da vista. O marido tem problemas da próstata, mas graças a Deus, nada de "malífico". Quem lhe vale é a filha, a Bela, que é muito esperta e trabalha nas Finanças. A Bela vai-lhe buscar as receitas para os medicamentos ao centro de saúde. O médico de família não presta para nada, porque não a manda fazer exames, mas enfim, sempre é barato.
A grande alegria da vida é olhar para as duas netas, a Soraya e a Andreia, que são muito bonitas, muito espertas e gostam muito dos artistas da televisão. Já não gostam de ir à terra com ela, mas o Joaquim, de tempos a tempos, lá lhe faz o gosto. Metem-se no carro à quinta-feira depois do almoço e depois vêm para baixo à terça. É quando as saudades das netas começam a dar-lhe cabo dos nervos.


Dr. Jay's