quinta-feira, setembro 16, 2004

Cheirava a lápis de cera, embrulhados em fino plástico

Cheirava a lápis de cera, ainda embrulhados num fino plástico. Tinha na mão o saco da ginástica, um saco de pano em que o meu nome, que ainda não adivinhava, estava bordado pela minha mãe. Ia no carro, naquela travessia que me parecia longa viagem, do Estoril a Lisboa, identificando os "palácios e castelos de fadas" que se perfilavam na marginal e que dividia com as minhas irmãs. Era sempre muito cedo. O meu pai falava das pedras da calçada que, a cada inverno, o mar insistia em destruir. Pensava que um dia viria uma onda gigante que nos engolisse e transportasse, numa versão Moby Dick sem baleia, para o estômago do mar. As minhas irmãs pareciam-me muito crescidas. Os meus pais eram gigantes de certezas.
Chegando à nova escola, apertava muito os punhos nos bolsos, para engolir aquele soluço de medo. O meu pai tinha já ido. A minha mãe acompanhava-nos ao recreio, onde uma multidão se acumulava. Acho que nunca tinha visto tantos meninos juntos. Eu não queria que ela se fosse embora. Acho que já roía as unhas nessa altura. Tudo tinha um cheiro novo. Sentia frio. Sem controlo, as lágrimas caíam e eu soluçava perante a inevitabilidade da minha mãe se ir embora, uma certeza contra a qual o meu desejo lutava.
Durante um ano ou talvez mais, o ritual das manhãs consistia em mais uma prova de ludíbrio por parte da minha mãe para se ir embora. E todos os dias eu chorava. E todos os dias me consolava a Neusa, uma auxiliar pequenina que acolhia ao colo todos os meninos de suas mães, que se achavam abandonados durante cerca de trinta minutos. Mas logo depois surgia a necessidade imperiosa de ir brincar. Isso era muito mais importante do que aquela tristeza. Assoando os narizes e lavando as lágrimas, a Neusa tornava tudo tão limpo como uma página nova.
A minha professora chamava-se Madalena. Tinha uma voz rouca, quente. Fumava cigarros longuíssimos com uma boquilha. Tinha muitos sinais na cara, mas tinha tirado um. Eu queria espreitar para dentro desse buraco, para ver como é um corpo do outro lado. Mas um poro, descobri, é muito pequeno. E lá dentro ainda é segredo. Ela contava histórias e punha-nos a fazer entrançados de tirinhas de revistas.

Ao fim de um ano, estava reconciliada com a minha mãe. Nunca cheguei a zangar-me com a escola. Afinal, não era ela que ia ter comigo de manhã, era a minha mãe que me fazia chegar lá todos os dias.
Na primeira classe, tínhamos uns bibes azuis escuros, parecíamos pequenos motoristas da Carris em preparação. Fazíamos uma fila indiana quando tocava a campainha. O mistério era sempre o mesmo: como é que aquele corredor fazia a ligação entre a brincadeira e o secreto mundo dos números e das letras.
Hoje, a Mariana começa a sua primeira classe. Eu estou desejosa. Para podermos ler livros juntas.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Fui revisitar o passado também, mas os cheiros eram outros. Também me lembro do percurso, do bibe, dos punhos cerrados. E dos intervalos em que ía a correr procurar-te ou, quando não ía, dos recados que me mandavam para te ir "visitar"! Eu era maior... Muito bonito. Mana I

4:39 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home


Dr. Jay's