quinta-feira, setembro 02, 2004

Do coração e da memória [ou isto é perigosamente umbelical]

Às vezes enredo-me nestes jogos de imaginação e faço um exercício impossível: procuro lembrar-me da primeira vez que me lembrei, conscientemente, de alguma coisa. Claro que me lembrei das palavras, quando as procurei pronunciar pela primeira vez. Mas não se trata disso, desses "grafos" no cérebro, que me limitei a repetir até ter circuitos como sendas no grande deserto da minha cabeça... Trata-se antes de procurar a primeira vez em que passando a porta da memória, fui em busca de um recanto qualquer no meu interior. A primeira vez, enfim, que fiz da memória um exercício de recordação.
Isto torna-se perigosamente umbelical. Toca por isso as franjas do ridículo. Mas como dizia alguém, piroso é não ter sentimentos. E é disso que se trata, porque na palavra recordação há "corda", o termo latino de coração. Por isso, o exercício que faço é uma tentativa de chegar ao princípio dos afectos. Mas dos afectos voluntários, se isso existe.
Por exemplo, havia alguém que estava fora do círculo natural do amor familiar e que eu decidi amar. Ou não? Ou que eu decidi guardar como modelo de amor fora da família? Ou que eu subsumi na categoria de amor filial? Ou que me deu o melhor modelo de amor, por não ter um modelo e ter sido esse lugar único que recordo com o coração? Só aí concentro boa parte dos cheiros, das cores, do som de um riso, de que me aproprio, agora só em momentos fugazes, no amor que tem categorias. Não é dessa pessoa que tudo vem: é do espaço dela que vive em mim. Do seu fenómeno na minha infância. Naquele tempo. Primeiro, é uma serenidade imensa, depois a certeza de um "para sempre" de que, porventura, nem ela se lembrará...Mas eu recordo.O exercício continua, estéril como sempre, agora tomando esta recordação como a primeira. Mas não é nunca verdade. Porque antes disso eu já existia - e porque existia, já havia um amor de que nunca me lembrarei. Talvez pertença à recordação dos outros. E talvez isso seja a geração. Ou as gerações.


Dr. Jay's