O fenómeno
Daniel Barenboim é um fenómeno. Isto quer dizer várias coisas:
1) que é um pianista irrepreensível, na técnica e no sentido musical;
2) que é um maestro gigante, um dançarino inigualável, um músico de alto calibre;
3) que é um vaidoso, como só os grandes podem ser;
4) que é um homem comprometido, sob o ponto de vista político e social, revelando uma grande generosidade;
5) que é tudo isto ao mesmo tempo.
O concerto começou com Mozart (Klavierkonzert Nr. 25), uma obra desenhada já na alvorada do declínio do compositor. Foi aí que Barenboim se apresentou como maestro e como pianista. Eu não tenho uma simpatia especial com esta obra de Mozart, mas fiquei colada à minha cadeira do princípio ao fim! Não sei quanto tempo durou, não ouvi mais nada, fez-se música. Até as habituais tosses, de que Rattle tanto se queixa, não as ouvi. Não sei se as houve, não dei por isso.
Ao piano, Barenboim fez surgir um Mozart "cheio", sem exagerado legatto, sem que a técnica (aliás, perfeita) sobressaísse; um Mozart certo, se é que se pode dizer isto. O fraseado de Barenboim é notável. E aí, o músico revela-se como pianista mas também como maestro. Sentando-se e tocando, levantando-se, ou sobre o piano erguendo os gestos, pôs a orquestra a tocar com ele próprio, numa simbiose impressionante. Gostei muitíssimo, valha o meu gosto o que valer!
A segunda parte previa-se mais difícil: a segunda sinfonia de Furtwängler, sobre a qual não sabia grande coisa, estava anunciado que duraria cerca de 70 minutos. Ora, pensei eu, depois deste Mozart e com Barenboim o tempo vai voar.
A Segunda Sinfonia de Furtwängler é, no entanto, demasiado longa. Mesmo com Barenboim, totalmente exausto, mesmo com a Filarmónica de Berlim, cujos instrumentos deitavam fumo... E é pena, porque a peça está cheia de motivos interessantes, é muito rica, mas depois perde-se, não se percebe porquê, para onde, para quê um interminável interlúdio em cada andamento, que o torna pesado, às vezes quase insuportável. Mas a música de Furtwängler, ao contrário do que eu pensava, está cheia de referências a Bruckner, a Mahler, a Wagner, ou ainda a Brahms. O homem que estreou algumas peças de Schönberg, acaba por se distanciar da música do seu tempo, confessando-se mais como compositor do que como maestro: "Ich habe als Komponist begonnen und bin bis heute Komponist geblieben". Na estreia da sua Segunda Sinfonia, que ele próprio dirigiu, aproveitou o programa para, sem nomear Schönberg, o atacar, defendendo que a música deve sempre conter uma relação profunda connosco, que dispense a análise e o conhecimento teorético por detrás da sua elaboração.
Furtwängler, como outros, ficou associado ao nazismo durante bastante tempo. A estreia desta peça faz-se em 1948, depois dos aliados o terem "desnazificado", mais de dois anos e meio depois de estar composta. Mas nestas coisas há sempre que ter cuidado, as etiquetas às vezes não servem: Barenboim, um jovem judeu, foi apresentado e tocou para Furtwängler na sua juventude. O próprio compositor escreveu uma carta sobre o pianista, dizendo dele que era "um fenómeno". E gozando Furtwängler de grande respeito na Alemanha, Barenboim deu um salto decisivo na sua carreira.
É aí que estão também as qualidades humanas de Daniel Barenboim: ele é o músico judeu que traz à cena o compositor ainda associado ao nazismo. É também o homem que, juntamente com Edward Said, todos os anos constitui uma orquestra Este-Oeste, com músicos de países do Médio Oriente, procurando superar os conflitos dessa região por meio da música e da cultura.
Regressando ao concerto, a segunda parte foi cansativa, mas se não fosse Barenboim quem me teria posto a ouvir a Segunda de Furtwängler?
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