sexta-feira, abril 30, 2004

Pode bem ser



O filme Lost in Translation pode bem ser um filme discutível, mas é para mim um dos filmes mais comoventes dos últimos tempos. A simplicidade narrativa, que poderia chegar a ser tão-só mais um remake de um cliché de que nos amedrontamos, o das histórias de amor, acaba por alcançar uma narrativa muito mais profunda dentro de nós - e eu não sei contar esta história. Os actores são fabulosos. O cenário gigante. A extensão do dano interior vastíssima, paredes meias com a ironia, por vezes hilariante, da vida.
A tradução é uma longuíssima história, que permite desvios e contra-correntes, que deu que fazer a mentes brilhantes, como a Benjamin, que se celebrizou também por ela. Mas a tradução, como se vê em Heidegger, no Diálogo com um japonês, tem um horizonte incomportável na categoria da língua, ou mesmo da cultura. Há em nós comportamentos, pensamentos, medos, curiosidades, falhas, cansaços, que não traduzimos por serem nossos, mas aos quais procuramos dar sentido nos outros. Lemos um olhar, escolhemos um lugar para nos sentarmos, uma bebida, um movimento, uns sapatos, lemos as mãos, procuramos sinais - e tudo isso carregamos no que sentimos pelos outros, traduzido, equivocado, certeiro.
Hercúlea tarefa a de dar a ver, sem dar a ver que se quer dar a ver, o que é para ler e traduzir, sem palavras e sem muito mais que a simplicidade de um encontro em Tóquio. A mim comoveu-me. Mas pronto, a Charlotte também tinha estudado filosofia. E a minha vizinha japonesa afiançou-me: o filme não é cómico, porque Tóquio é mesmo assim...


Dr. Jay's