Aprisionar-se
"Começa a percorrer o quarto de um lado para o outro, muda a posição da mesa pela segunda vez. Debruça-se sobre o espelho, examina o rosto, examina os próprios poros da pele. Não consegue escrever, não consegue pensar.
Não consegue pensar, portanto o quê? Não esqueceu o ladrão na noite. Se vier a ser salvo, será pelo ladrão na noite, para o qual tem de estar resolutamente alerta. Contudo, o ladrão não virá a não ser quando o dono da casa o tiver esquecido e haja adormecido. O dono da casa não pode estar alerta e de vigília sem cessar, caso contrário a parábola não se concretizará. O dono da casa tem de dormir; e, se tem de dormir, como pode Deus condenar o seu sono? Deus tem de o salvar, Deus não tem outra maneira. Contudo, aprisionar Deus assim numa rede de razão é uma provocação e uma blasfémia.
Está no velho labirinto. É a história do seu vício de jogar noutra forma. Ela joga porque Deus não fala. Joga para fazer Deus falar. Mas fazer Deus falar no virar de uma carta é uma blasfémia. Só quando Deus está calado é que Deus fala. Quando Deus parece falar, Deus não fala.
Fica horas sentado à mesa. A pena não se move. Intermitentemente, a figura esquemática volta, a caricatura de velho engelhado dele próprio. Está bloqueado, está na prisão."
J. M. Coetzee, O Mestre de Petersburgo
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