segunda-feira, maio 03, 2004

Avisada

Na semana passada, aconteceu ir jantar a um restaurante italiano muito bom, nas margens do Spree, com o tempo a permitir uma passeata nocturna e tudo. Normal, como diriam as ucranianas...não fosse este restaurante ficar situado em Kreuzberg. O nome não diz nada? Pois. Quem chega a Berlim da estranja, rapidamente se pergunta onde estão os 500 mil turcos que cá vivem - a resposta chega lesta: em Kreuzberg. E o nome, ainda para mais, recorda a famosa doença das vacas loucas, embora obrigue ao cruzamento de duas zonas da cidade: Kreuzberg e Schönefeld dão Kreuzfeld - que é como quem diz: alto lá, que isto é difícil.
Um disparate. Kreuzberg é uma das zonas mais vivas da cidade, com os tais turcos sem fim, mas também com muitas outras populações não-nativas (será politicamente correcto?). Os hispânicos estão em massa, e em geral a malta que gosta de se divertir, que não quer saber da polícia, nem do Estado, nem de coisa nenhuma que cheire a bandeira. Anarquistas, dir-se-ia, mas nada como o meu anarquista preferido , pacífico, na rectaguarda a mandar bocas. Não.
É preciso explicar uma coisa. Isto é a Alemanha. Ok. Ainda não?...Bem, o que isto quer dizer é que aqui é mesmo a doer. Nada de traseiros pró ministro, como nessas ousadas - e de duvidoso gosto - invectivas juvenis portugas. Ná. Nada disso. Aqui, bebe-se a cerveja e atira-se a garrafa bem ao centro do pára-brisas do primeiro carro que tiver o azar de passar. Portanto, passamos da civilização à barbárie em meramente 2 ou 3 estações de metro. Não houvesse metro e nada disto seria real. Vivemos paredes meias e mal sabemos do que se passa. Há um silêncio combinado acerca destes fenómenos. Os relógios mais caros do mundo vendem-se a 5 minutos do maior centro de drogados da cidade. O meu pedinte favorito fica à porta da Literaturhaus, na rua mais chique da cidade - a Fasanenstrasse. E a vida corre, como sempre.
Nesse jantar - para explicar por que é que ele cá anda - estavam nativos. Quero dizer, nativos alemães - porque também eles só vieram para Berlim nos anos 80, para participar nos campeonatos hippies e ao mesmo tempo viver em Charlottenburg, a Lapa cá da terra. E, depois, já entradotes, resolveram que Kreuzberg é que era, porque os faz sentir jovens. Ja.
O segredo que nos revelaram, a poucos dias do evento, foi que era "tradição", desde os anos 80, haver um enorme motim naquela zona, no 1º de Maio, de protesto e descontentamento face à política. Mas o motim descreve-se assim: um supermercado esventrado e roubado e depois queimado, carros carbonizados, restos de objectos cortantes (garrafas, pedras, tudo serve) por todo o lado, um consumo anormal de cerveja - uma concentração anormal de polícia.
Este ano as instituições clamam vitória: o "ritual da violência" foi contido com muito mais facilidade, os estragos foram limitados e só arderam aí uma dezena de carros, foram parar às urgências umas poucas centenas de pessoas, presas outro tanto.
Teremos todos perdido a noção de que já todos perdemos?





Dr. Jay's