quarta-feira, março 31, 2004

Olá Portugal

Quando terminei o teste para ver em que nível ficava, perguntou-me a professora qual era a minha nacionalidade. Estremeceu perante a resposta: portuguesa???!!! Não pode ser. Os portugueses têm uma pronúncia horrível e enormes dificuldades em aprender o alemão - disse-me ela, do alto dos seus olhos azuis. Dou-lhe os meus parabéns, por não ter pronúncia, continuou.
Será que ter pronúncia é pecado? Não é pior usar véu? O que seria de nós sem a Linda de Suza, a sua valiza en carton e a sua ida para uma terre de France?
Teremos de ter bigode e continuar a ser porteiras?
Fiquei tão deprimida que passei pela "Aqui España", que é uma loja de portugueses e onde se vende azeite Gallo e bacalhau, Sumol e Sugus, entrei e arrebatei um "Periquita".
Decidi que vou para uma Volkshochschule limpar a honra dos compatriotas. E depois, afogo as mágoas numa ginginha...
Olá, Portugal! Estais aí?

Arroz Xau-xau

Bem sei quanto este blog se está a tornar gastronómico...entre berliners e frankfurters, pastéis de belém, bolas de berlim e recheios, a minha mente mede-se em colheres e quantidades possivelmente cozinháveis. Mas é só um mote, garanto, e prometo não dar receitas.
Tive como colegas de penas e trabalhos, na escola onde andei a tentar aprender alguma coisa de alemão, muita gente. Engane-se quem pense que geograficamente a amplitude seria ampla...à excepção de moi-même e da professora, não havia europeus. Tudo amarelinho de olhos em bico, onde aprendi a ver diferenças - vietnamitas, mongóis (da Mongólia), coreanos, chineses e tibetanos. Depois, mais perto, indianos, iranianos e iraquianos. Finalmente, como não podia deixar de ser, turcos. Berlim é, depois de Istambul, a maior cidade turca do mundo, com meio milhão de pessoas.
Sim, o mais difícil aqui, é encontrar um alemão. De Berlim, não há ninguém que seja. Os nativos são raríssimos. E em Kreuzberg, por exemplo, um bairro que agora está na moda e onde se instalam os artistas, é como um passeio pela Turquia, com vista para a Ásia. No metro, ouve-se falar de tudo. Em alemão, pouco, porque os que falam, limitam-se a ficar calados...
Bem, mas regressando ao interior da minha aula, as dificuldades são de uma ordem totalmente desconhecida. Os asiáticos são espertos e estes eram todos umas cabeças. Sabem as regras todas, praticam a gramática como quem salta pocinhas. Então, que estavam eles a fazer ali?
Os asiáticos não pronunciam as vogais. Foram, para mim, os primeiros pássaros da primavera, num chilrear de nenúfar em nenúfar que, não fora uma tentativa de comunicação, teria apreciado de um ponto de vista musical. Quando percebemos alguma coisa, é uma vitória. Depois, repetimos para ter a certeza. Quando eles riem muito, era isso mesmo. Quando esgrimem uma dificuldade com rugas na testa e se precipitam para o dicionário, é melhor começar a falar de outra coisa.
Raramente, ao fazer exercícios, percebem do que se trata. Conjugam bem os verbos, aprendem-nos de cor. A diferença entre entrar e sair não a conhecem. Ontem e amanhã são o mesmo. Talvez e sim têm uma familiaridade estranha, como marido e mulher divorciados.
Convidei por diversas vezes uma coreana com quem simpatizei para um café. Disse-me sempre que "talvez amanhã". Mas amanhã não quer dizer nada e "para a semana pode ser" também não.
A professora é uma montanha de berliners em equilíbrio sobre duas pernas. Chama-se Prisca, que para mim é nome de gata, e gosta de usar blusões de cabedal. É muito má, grita que se farta, mas tem sentido de humor. Devastadora, como a sua dimensão.
Ao esclarecer os termos mais complicados de um texto no quadro, escreveu "civilização". Um vietnamita perguntou que era aquilo. Ela respondeu, "pois claro que não sabe...e já agora, a uma pessoa que sabe chama-se civilizada". Quis saber por que razão andam as raparigas todas com a sua garrafa de água atrás - ela obviamente não conhece os princípios elementares da dieta. Depois, como se fosse para si, perguntou se estaria tudo de volta à fase oral. Eu larguei uma gargalhada isolada. A partir daí, sou respeitada como uma louca. Há qualquer coisa de mitológico nas minhas gargalhadas, pensam eles.
Depois dos sorrisos e das despedidas, depois deste regresso à escola, as minhas vogais nunca mais serão as mesmas.


Bola de Berlim sem recheio

Fiz a experiência radical de frequentar aqui um curso de alemão. Acabei numa escola privada, a Hartnackschule - eu sei, não é bom de pronunciar - onde, depois de um teste feito numa garagem inundada de gente a fazer um teste, me puseram num nível que deconhecia - uma coisa como o Sá-Carneiro, "pilar da ponte de tédio, que vai de mim ao outro"... traduzindo: fui parar a um curso de um mês intensivo, de recapitulação de toda a gramática básica.
Boa, pensei eu, assim é que vai ser, vou sair daqui a falar que é uma beleza - sem erros, estruturas gramaticais correctas, verbos bem conjugados - maravilha!
Hoje, o meu curso acabou. Sei dizer tanto quanto sabia, mas reaprendi as regras todas...e gastei uma pequena fortuna.
À tardinha, vou a uma Volkshochschule, para os leigos "escola do povo", ver se ainda há lugar para uma pobretanas linguisticamente carente.
O que vale às grandes democracias são estes ataques de boa-vontade...

terça-feira, março 30, 2004

To blog or not to blog?

Fui ontem confrontada com uma pergunta que pensei que já ninguém fazia - o que é um blog. Engasguei-me perante a resposta...lembrei-me de como há muito tempo - ou parecerá muito? - um amigo me explicou o que um blog era e que era o que estava a dar. Lembrei-me de ter pensado na altura "pronto, lá estão estes narcisistas a precisar de afagar o ego publicamente"...mas depois comecei a ser frequentadora assídua dos blogs e achei que, por serem tantos e tão diversos, era impossível ter uma posição sobre "o blog". "O blog" não existe. Existem milhares de espaços onde se dizem coisas.
E é aí que está o problema. Se queremos só dizer coisas, se queremos que nos oiçam para além da esfera daqueles que, coitados, têm mesmo que nos ouvir, será que não caímos no ridículo de um confessionário pseudo-intelectual, que limpasse a honra ao Big Brother?
Imaginemos a televisão em hora de ponta: a 2, recentíssima, sempre na crista da onda, avança com o Big Brother dos intelectuais. Vicente Jorge Silva entrevista, mal mas entrevista, os participantes:
- Nós bem vimos que havia um Kierkegaard debaixo da cama...ontem à noite, diga lá...
- Hesito entre a profusão de seres e uma ontologia radicalmente una e estética...
and so yon and so yon...
Debaixo da minha cama há pó. Não leio filósofos depressivos. Deixei-me disso há uns tempos.
May I blog?

segunda-feira, março 29, 2004

Blogas de Berlim

Não era o outro que dizia - eu é mais bolos? Poderemos mudar? Eu é mais bolas?
E pastéis? Pega?

Os meus vizinhos

Moro num apartamento pequenino de onde tenho toda a vista oeste de Berlim. Espreita-me a Funkturm. Virei as costas ao leste que sempre teve o problema de não ter costas. É assim quando se fazem muros. As fronteiras são as linhas mais ambíguas de que há notícia. São dos dois lados e dizem que há dois lados. Sou um corpo-fronteira, por ser estrangeira. Movo-me e desenho nesta cidade mapas outros.
O meu edifício contém múltiplos apartamentos, são cerca de 60. Comecei este mês a ter vizinhos. Em frente, descobri um sujeito de cabelos sujos e compridos, camisa aberta a evidenciar pelória, o que muito se coaduna com as temperaturas prussianas, que dirige uma empresa chamada "Inversiones Areales". Imaginei-o de imediato realizador de filmes porno, um dia morto no elevador das traseiras, por causa de umas contas esquecidas e velhas de quando ainda era só dealer. Por via das dúvidas, sorrio-lhe bastante. Ele estica-se na ponta das suas botas em pontas e como num passo de ballet acende-me a luz, triunfante na sua utilidade máscula.
Por baixo, mora uma personagem de Woodie Allen que ainda não toma comprimidos. Bate à porta, com frequência, para me perguntar se comprei uma secretária nova, porque está a ficar doido com o barulho de uma secretária. Se as secretárias emitem sons, barulhos de tal modo irritantes a ponto de raptar o sono aos mais neuróticos, essa é questão ainda por apurar...disse-lhe que não, que dormia no sofá. Ele foi-se embora, sempre acabrunhado, humilhado na sua descoberta falhada da secretária irrequieta.
Sem vista, e precisando sempre de ajuda para pendurar cortinas, todas diferentes, ao longo das inúmeras janelas da sala, vive uma japonesa violinista, com nome de oratória - Missa. Será a Missa Solemnis? Ensaia com destreza as suas peças musicais enquanto eu lhe faço buracos na parede para pendurar mais um estore. Desta feita, foi um branco. Este é melhor, só precisou de 2 buracos. O outro foi de mais demora, três buracos e um encaixe difícil. As coisas do IKEA são tão melhores, quanto mais difíceis forem de montar. As outras, enfim, as outras são só difíceis.
No rés-do-chão vive o responsável pelo prédio, um rapaz que se encolhe de vergonha quando me vê, ainda não percebi porquê. Fica satisfeito quando o trato com deferência para lhe pedir, por favor, que trate de arranjar caixotes do lixo.
Vizinhos ma non troppo, no meu território de fronteiras, em que se ri a minha imaginação, enquanto me esforço por articular esta má desculpa para língua.
Comigo, vive uma alma gémea que também ainda não arranjou nacionalidade.
Somos bolas de berlim sem recheio que, em bom rigor, não são bolas de berlim, mas uma pretensão apenas.

Berliners vs. Frankfurters

"Ich bin ein Berliner", dizia Kennedy. Ainda bem que o discurso não decorria em Frankfurt...para os mais desconhecedores da culinária alemã (e ela existe?), uma frankfurter é uma salsicha. E Kennedy não teria alergia aos interiores porcinos? Pois bem, em Berlim, é-se um berliner. Com um bolo que aqui é recheado de tudo o que se possa imaginar, mas que não é igual a uma bola de berlim, imaginam-se pastéis de nata para matar as saudades de Belém.
Ich bin eine berlinerin - porque isto dos géneros tem que se lhe diga, mesmo quando não se tem mãos para apresentar. E aqui, tarde demais, porque sou assim, começo o meu diário berlinense, em forma de bola, recheado, mas com um sabor sempre estranho - porque não há nada como pastéis de nata.
Quem me imagine bola, que se divirta.


Dr. Jay's