terça-feira, agosto 31, 2004

shrinkingcities

na KW, como sempre, o melhor
em setembro, chega o projecto
shrinkingcities

Rot [ou velocidade no vermelho]

Uma senhora de provecta idade encontra-se na Kantstr.junto aos sinais. Pede ajudo para atravessar.
- Com certeza, mas primeiro teremos que esperar pelo sinal verde.
- Se fosse para esperar pelo verde, não pedia ajuda!

Uma outra fábula de Lafontaine

Ontem foi segunda-feira. Aqui, isso significa que houve manif outra vez. Só que ontem foi diferente: o senhor Oskar Lafontaine, militante SPD, ex-colega de Schroeder, afastado do partido por ser demasiado "à esquerda", resolveu participar na manif em Leipzig, apesar de, como diziam os jornais, "ninguém o ter convidado"...
Desse já famoso e futuro desporto olímpico alemão que é o lançamento de ovos, o dito Lafontaine não foi poupado. E enquanto se esforçava furiosamente por ser ouvido pela multidão, abafavam a sua voz gritos virulentos, apupos e insultos. De facto, ninguém o tinha convidado...
A questão que se põe, mais uma vez, é a do aproveitamento político destas manifestações de segunda-feira contra o pacote de medidas "Hartz IV". Se por um lado o PDS (antigo Partido Comunista, depois do lifting-reunificação) procura furiosamente tirar dividendos do descontentamento das populações do leste, socialmente mais frágeis e que, portanto, serão mais afectadas pelas medidas propostas, Lafontaine procurou nesta ocasião relançar-se como político de uma "verdadeira esquerda", mimando Schroeder com epítetos do tipo "mentiroso", "traidor", etc e tal. Ainda sem dedo espetado à Louçã, mas a caminho. Só que, como se viu, ninguém parece levar Lafontaine a sério.
O Estado Social está à beira do colapso. A reunificação alemã obrigou-o a um esforço suplementar. Esforço esse que permanece, porque a realidade do antigo Leste não se pode aproximar do nível da ocidental em apenas uma década. Mas a própria sustentabilidade do sistema está em causa. Daí, até o Süddeutsche, jornal normalmente crítico em relação a Schroeder, afirmar que este pacote de medidas é absolutamente necessário. A forma será discutível, mas a substância é inevitável.
Lafontaine procurará uma "lição" hoje. Mas acima de tudo, o que transparece é que "do descontentamento alheio não procurarás retirar dividendos políticos".

Missiva

Tu disseste se me escreveres
Que não seja só à máquina
Acrescenta uma linha do teu punho
Uma palavra um nada pouca cousa
Sim sim sim sim sim sim sim sim

A minha Remington é todavia boa
Gosto muito dela e trabalha bem
A minha letra é nítida e inteligível
Vê-se bem que a dactilografei eu mesmo

Há brancos que só eu sei fazer
Vê tu pois a clareza da minha página
Todavia para teu prazer acrescento à mão
Duas três palavras
E um grande borrão de tinta
Para não as poderes ler

Blaise Cendrars, Mesa de Amigos
(versão de Pedro da Silveira)

segunda-feira, agosto 30, 2004

Definições #2

Uma carta de amor é uma expectativa de efeitos hormonais, por via telepática.

Telepatia

"[...] tu escreves-lhe a ela porque queres que a tua carta produza um efeito e porque acreditas que vai produzi-lo. Não escreverias uma única linha no papel se não estivesses convencido que tens uma chance telepática e que a dama, a dois mil quilómetros de distância, vai fundir sob o efeito das tuas palavras."

Peter Sloterdijk, "Ensaio sobre a intoxicação voluntária. Um diálogo com Carlos Oliveira"

O Urso

O símbolo da cidade de Berlim é o urso. O símbolo vem da figura de Albrecht, cujo cognome era "o Urso", coroado margrave de Brandenburg em 1157, depois de ter derrotado as tribos eslavas. Já sofreu várias vicissitudes, entre elas uma mistura com a águia, que entretanto voltou a desaparecer.
Quem visitar a cidade já sabe que se quer um recuerdo não poderá escapar ao dito animal.
Por outro lado, Berlim também é famosa pelo Jardim Zoológico, que, confesso, ainda não visitei. Não sou fã destes espaços, a não ser talvez que reconstruíssem o Zoo descrito em "A vida de Pi", de Yann Martel. Talvez assim...não sei.
Quando me passeio pelo Tiergarten, que confina com o Jardim Zoológico, normalmente afasto-me dessa zona onde cheira intensamente a animais enclausurados...embora sem ser por detrás de grades, diga-se, mas para lá de um canal do Spree e de alguns obstáculos "naturais".
Ontem, houve um Urso que, servindo-se de um tronco que lhe tinha sido dado para que brincasse, resolveu dar uma voltinha cá fora...experimentou uma bicicleta, visitou o Jardim Zoológico dos Humanos Apavorados e depois...não se lembra muito bem...
É que o veterinário de serviço veio dar-lhe um valente xanax para que fosse transportado outra vez para o seu habitat. Hoje, deve estar de ressaca. A pensar:"Bolas, aquele tronco é melhor que os cogumelos que comi da outra vez! Que cena, men!"



Do dia para a noite

Sábado. Já tinha acontecido em pleno Inverno e, como na altura me tinha passado pela cabeça, deveria repetir-se no Verão. Foi a "Lange Nacht der Museen", uma noite diferente para os museus da cidade de Berlim que estiveram abertos até às 2 da manhã. Para ajudar, há percursos organizados entre museus, a pé, de bicicleta, ou de autocarro. E há também bilhetes diferenciados, consoante o número de museus que se queira visitar, ou consoante os percursos sugeridos.
Na raiz desta proposta está a ideia de que um museu, à noite, é "outro museu". E embora as hordas de visitantes a par de alguma histeria escondam o lado mais sedutor da escuridão e do silêncio, é verdade que o museu, à noite, é "outro museu".
Estando habituados à luminosidade artificial ou filtrada no interior desses espaços quase sagrados, raramente nos apercebemos de que existe uma luz que faz parte do museu. A luz é ingrediente da nossa experiência de visitantes. Um ingrediente silencioso, é certo, mas indispensável, normalmente estudado até ao mais ínfimo pormenor, criado para servir os nossos olhos, os olhos de quem procura, no que vê, uma identificação (consigo? com o mundo? com um estado de alma? com uma enciclopédia?)
Ora, nesta experiência noctívaga o que acontece é que pouco muda nos museus onde a luz é artificial...e no entanto, esperar à entrada sob um céu escuro de noite e sair para as estrelas onde os olhos não precisam de se habituar a nada é proporcionar uma continuidade entre esse interior, o espaço, esse interior, a história, e esse interior, os nossos olhos... como se todo o nosso mundo se rodeasse desse silêncio cheio de mistérios que são as obras expostas, nos seus motivos, inquietações ou afirmações peremptórias, interrogações, medos, perdas, risadas, ironias...
A noite transforma-se num enorme átrio de museu, onde circulam as "nossas peças": por detrás de um sorriso silencioso, há um museu imaginário que pertence ao segredo de um imenso céu escuro, escuro. Como o sorriso pertence a uma recordação doce que se torna viva ali mesmo.


sexta-feira, agosto 27, 2004

Jovem!

Jovem!
Isto

é arte, tá?

Definições

"[...] a fidelidade não é senão uma palavra que designa o gosto persistente do combate com o mesmo adversário."

Peter Sloterdijk, Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária

quinta-feira, agosto 26, 2004

Inflamação

[No meio de uma discussão acalorada]

- Eles não são mais produtivos!
Trabalham é mais!

Inversiones [ou da publicidade ao contrário]

E se algum dia um IMPULSIVO
te oferecer flores,
isso é ESTRANHO.

quarta-feira, agosto 25, 2004

Zeitgeist

Ao fim-de-semana, ruma-se ao norte, costa do Báltico, um saltinho à Polónia para comprar Pfifferlinge ao preço da chuva, que cai, efectivamente.
À segunda, a costumeira manif, da câmara para a sede do SPD, ou vice-versa, ou em qualquer canto da cidade de Berlim.
À terça, é dia de tiro ao alvo: aproximando-se de Schroeder, a multidão em fúria brinda-o com uma chuva de ovos - que atingem os guarda-costas, os assessores e os jornalistas, mas não o alvo.
Nem quero imaginar quando chegarmos a sexta...

terça-feira, agosto 24, 2004

Banalidades em forma de provérbio [ou filosofia barata]

Mais vale um texto de ensaio
do que um ensaio de texto.

segunda-feira, agosto 23, 2004

Efeitos olímpicos

São os primeiros efeitos olímpicos do governo Santana Lopes:
o atletismo português vai de vento em popa,
na linha "pernas para que te quero".

Rügen, (Kreidefelsen auf Rügen) por Caspar David Friedrich

Rügen (Ostsee)

Usedom (Ostsee)

sexta-feira, agosto 20, 2004

E agora, se não se importam...

...vou só ali ao Mar Báltico e já venho.

Was schlimm ist

Num comentário, há uma insinuação superficial e malevolente sobre a ligação de Benn ao nazismo, que deixa no ar aquela ideia tão cara a alguns (aos nazis, sobretudo), de que a História, e também a História de Arte, deve ser contada aos solavancos, a partir da determinação dos "puros" e dos "impuros". Quem, da sua cátedra, o quiser fazer, que avance.

Encontrei uma recensão feita pelo Pedro Lomba a esta tradução de 50 poemas de Benn por Graça Moura. Eu não tenho qualquer simpatia política por Pedro Lomba, nem sequer por Graça Moura, mas isso não me impede de os ler e aprender com eles.


Da Revista Inventio, há uns anos...

«50 POEMAS »
GOTTFRIED BENN
Relógio D'Água

No seu incansável trabalho de tradutor, Vasco Graça Moura tem tido o mérito de apresentar ao público português autores muito diferentes e de línguas também diferentes. Villon, Shakespeare, Dante ou estes «50 poemas» de Gottfried Benn são alguns dos nomes que Graça Moura verteu, com mestria notável, para a língua portuguesa.. Esta tradução de Benn é uma tradução de 1980 e em boa altura surge de novo. Gottfried Benn não é um autor particularmente presente na literatura portuguesa. Pode mesmo dizer-se que a matriz expressionista da poesia de Benn nunca teve particular repercussão em Portugal, longe da Europa central, o epicentro cultural no qual aquele germinou. O significado original do expressionismo está na concepção do mundo como expressão individual. Dizer que o mundo adquire as dimensões problemáticas de uma expressão pessoal é dizer que esse mundo precisa de ser desfigurado a partir dos efeitos devastadores que provoca na consciência do escritor. Num célebre ensaio sobre o expressionismo, Vintila Horia classificou-o como «necessidade de salvação» e escreveu que o «expressionista adverte que o mundo se equivocou e, de uma maneira ou doutra, quer afastar-se dele». Porque no princípio do século, a morte não existia só em Veneza, a morte era um sentimento que brotava constantemente do tempo, essa morte que assumia contornos quase ontológicos, era a morte de Georg Track, Robert Musil, Herman Broch, Hoffmansthall, Rilke, Junger, Thomas Mann e tantos outros. Era a percepção da decadência, da dissolução crescente da cultura ou do ser.
Gottfried Benn pertence a essa geração histórica e cultural. Nascido em 1886 em Mansfeld na Alemanha, formado em medicina e médico de profissão durante toda a sua vida, Benn não se furtou a uma breve, enganosa e enganada aproximação ao nazismo em 1933 e 1934, como tantos outros à altura, vindo a afastar-se decididamente depois, silenciado de 1936 a 1948. A poesia de G.Benn não é uma poesia fácil, marcada por uma certa propensão para o intraduzível. Desde logo, é uma poesia que redefine os parâmetros do Eu poético. Como o próprio Benn escreveu, a «existência de cada um, a história, o universo, só são apreensíveis em duas categorias: o conceito abstracto e a alucinação.» É nesses termos que é feita a projecção do eu no exterior e não liricamente. Por exemplo, diz Benn em «O Homem Fala»: Um homem fala:// Aqui não há consolo. Vê, como a terra/acorda também de suas febres./ Mal brilham ainda algumas dálias. Está devastada/ como depois de uma batalha a cavalo./ Oiço a abalada no meu sangue./ Tu _ meus olhos bebem já/ os azuis das colinas distantes./ Algo toca de leve as minhas fontes.
Por vezes, encontra-se nestes 50 poemas de Gottried Benn uma postura, claramente naturalista que não nos deve iludir quando ao seu exacto alcance. Trata-se de um falso naturalismo meta-histórico, de um naturalismo que se recusa a si mesmo, que se anula e impede a mais vaga associação ao contingente e ao imediato. Porque «Uma realidade não vem fazer falta/ e até não existe sequer, quando alguém/ do tema inicial do instinto e da flauta/ pra sua existência uma prova tem. Ora, provar a nossa existência é fragilizá-la, é torná-la humanamente impossível. «Uma vida normal, uma morte normal não é nada», escreveu Benn.
A leitura destes poemas de Gottfried Benn tem o efeito da humildade. É do maior interesse conhecer de perto um dos grandes poetas da literatura deste século e, para quem quiser ir mais longe, aventurar-se por esse mar tormentoso que foi a obra expressionista da altura. Escutemos, para concluir, o próprio Benn: «Então sofrias tu, mas ressurgias,/morreste então, mas foi morte de amor,/ a cada passo e volta hoje verias:/ vazios estão os campos sem ardor.(..)

Pedro Lomba



Máxima do dia

Quando cito um poeta, é um poeta que eu cito.

quinta-feira, agosto 19, 2004

Eles andem aí...

Os PERCURSOS estão de volta!

Citar é o que está a dar

O QUE É GRAVE

Quando não se fala inglês,
ouvir falar de um bom romance policial inglês
que não foi traduzido para alemão.

Ver, quando faz calor, uma cerveja
que não se pode pagar.

Ter um novo pensamento
que não se pode embrulhar num verso de Hölderlin
como fazem os professores.

Em viagem, à noite, ouvir bater as ondas
e dizer para si que elas sempre o fazem.

Muito grave: ser convidado,
quando lá em casa há mais sossego,
o café é melhor
e não é preciso conversar.

O mais grave de tudo:
não morrer no Verão,
quando tudo é claro
e a terra é leve para a enxada.


Gottfried Benn, Was schlimm ist (trad. Vasco Graça Moura)

Aprisionar-se


"Começa a percorrer o quarto de um lado para o outro, muda a posição da mesa pela segunda vez. Debruça-se sobre o espelho, examina o rosto, examina os próprios poros da pele. Não consegue escrever, não consegue pensar.
Não consegue pensar, portanto o quê? Não esqueceu o ladrão na noite. Se vier a ser salvo, será pelo ladrão na noite, para o qual tem de estar resolutamente alerta. Contudo, o ladrão não virá a não ser quando o dono da casa o tiver esquecido e haja adormecido. O dono da casa não pode estar alerta e de vigília sem cessar, caso contrário a parábola não se concretizará. O dono da casa tem de dormir; e, se tem de dormir, como pode Deus condenar o seu sono? Deus tem de o salvar, Deus não tem outra maneira. Contudo, aprisionar Deus assim numa rede de razão é uma provocação e uma blasfémia.
Está no velho labirinto. É a história do seu vício de jogar noutra forma. Ela joga porque Deus não fala. Joga para fazer Deus falar. Mas fazer Deus falar no virar de uma carta é uma blasfémia. Só quando Deus está calado é que Deus fala. Quando Deus parece falar, Deus não fala.
Fica horas sentado à mesa. A pena não se move. Intermitentemente, a figura esquemática volta, a caricatura de velho engelhado dele próprio. Está bloqueado, está na prisão."

J. M. Coetzee, O Mestre de Petersburgo

quarta-feira, agosto 18, 2004

Será dos meus olhos?

É minha impressão ou é mesmo o PR quem tem ganho o concurso "ora-vê-lá-se-dás-um-tirinho-no-pé [e acertas]"?

As manifs da segunda-feira

Um esclarecimento: um dos elementos que contribuiu para a queda do regime comunista na ex-DDR foi o das manif's de segunda-feira. O facto de elas serem retomadas num contexto novo, a luta contra o Hartz IV, não deixa de arrastar consigo o espectro desse passado sórdido.

terça-feira, agosto 17, 2004

Denial???


Adenda indispensável ao post anterior [ou antes que me comecem a chamar xenófoba]

Ontem foi dia de manifestações na Alemanha, em especial nas zonas do antigo Leste. Tem sido prática das últimas semanas. E é uma evocação um pouco sinistra dos tempos da DDR, do comunismo e da miséria, com as manif's de segunda-feira.
O objecto das manifestações foi um pacote de medidas baptizadas de Hartz IV, que consistem numa redução dos benefícios sociais, em geral, e muito particularmente, na limitação temporal do direito ao subsídio de desemprego.
É aqui que entra a história (verídica) que acabei de relatar. Na Alemanha, o Estado social tem uma amplitude que não se imagina. Mas os efeitos perversos do mesmo geram assimetrias e desequilíbrios que dificilmente a sociedade alemã saberá "digerir".

Por um lado....
Por um lado, há os alemães que trabalham e que fazem descontos brutais para a Segurança Social, nomeadamente para um Fundo de Pensões, para um "seguro de desemprego" e para um seguro de saúde. Na minha experiência isso significa cerca de 1 000 euros num salário de 2 800. Falta ainda, obviamente, deduzir impostos. Que se traduzem numas largas centenas.
Por outro lado...
Por outro lado, há os alemães desempregados. Recebem cerca de 70% do valor do seu último salário durante um ano, que se segue de prestações de cerca de 50% - sem limitação temporal. Ou seja, um desempregado pode passar uma vida inteira a receber cerca de 50% do seu último salário e nunca mais trabalhar. Isto porque o mesmo pode recusar as propostas de trabalho que surjam do centro de emprego.
E além disto...
Além disto, há que traçar ainda a fronteira entre a Alemanha mais rica, ocidental, e a Alemanha mais pobre, de leste, onde grassa o desemprego. Para quem não saiba ainda existem diferenças nas tabelas do Estado quanto a remunerações a auferir no leste e no lado ocidental. Em relação a tudo, de salários a pensões de reforma.

Independentemente da justiça social que exista, ou não, por detrás de um sistema como este, o que está em causa é a sua incomportabilidade. O sistema encontra-se à beira do fim.
A proposta feita pela coligação SPD-Verdes não visa retirar por completo esses apoios, mas dar-lhes um carácter provisório, limitado no tempo.
O que é mais difícil é a agilização dos centros de emprego, porque se pretende tornar obrigatória a aceitação de praticamente qualquer proposta de trabalho que surja. Polémico?
Junte-se a este quadro uma deficiente explicação das medidas à população e um hiper-complexo processo burocrático pelo meio e obter-se-á a confusão que, às segundas-feiras, se organiza pelo país fora.

A história de A. e de K.

Tenho uma colega no curso de alemão que é polaca. Só uma, para meu grande espanto. Há muitos polacos em Berlim, o país natal não fica longe e as diferenças são incomensuráveis. Apesar da adesão da Polónia à UE, só está prevista a legalização e autorização de permanência a polacos daqui a 7 anos. Assim, a maioria deles faz trabalho ilegal ou, como esta minha colega, chamemos-lhe A., vive da segurança social.
A. tem 30 anos e um filho de 3. Foi casada com um alemão. Teve o filho na Alemanha. O filho é alemão. Ela era fotógrafa. Mas trabalhava em "logística", como ela própria me explica, no seu nervosismo e atabalhoamento normal. Há uma disseminação da "logística" no leste europeu que não compreendo. Nem sequer chego a perceber do que se trata. Ela fala-me numa coisa que soa a gestão de recursos. Será?
A. está desempregada. Embora nunca tenha trabalhado na Alemanha, nem, consequentemente, tenha feito descontos para a Segurança Social, A. recebe mensalmente subsídio de desemprego. Além disso, como está sozinha com um menor a seu cargo, recebe uma ajuda também mensal para pagar a renda. Em termos práticos, ela não paga renda. Como qualquer mãe neste país, ela recebe ainda um subsídio mensal, como um abono de família: o primeiro filho "vale" algumas centenas de euros por mês. E como tem uma situação económica de absoluta dependência e alguma fragilidade, não paga a creche do filho.
Além destes apoios directos, A. recebe também uma ajuda estatal no que diz respeito à saúde. Na prática, A. não paga consultas, nem tratamentos, apenas os medicamentos que compra na farmácia. A. tem passado os dias no dentista. Depois foi o problema da sinusite. Agora, parece que se está a tratar da asma.
O filho de A., chamemos-lhe K., está na creche durante todo o dia. As educadoras pensam que ele sofre com a separação dos pais. K. ainda não fala muito. Balbucia algumas palavras em alemão e compreende perfeitamente o que a mãe lhe diz em polaco. As educadoras consideram-no hiper-activo e agressivo. K. tem 3 anos e meio e parece-me completamente normal. Mas mesmo assim, as educadoras encaminham a mãe para uma psicóloga que fará o apoio semanal de K. a expensas do Estado. A. está muito contente. A psicóloga é óptima e a criança fica lá cerca de meia hora em que ela pode descansar. Sem custos.
A. está naturalmente inscrita num centro de emprego. Caso contrário, não poderia receber o subsídio. Mas A. está inscrita como fotógrafa. As probabilidades de vir a encontrar trabalho são mínimas. Ela sabe-o, mas isso não a preocupa. Antes pelo contrário...é que quando A. começar a trabalhar, receberá um salário, com certeza, mas perderá todos os subsídios de que neste momento goza. Terá de fazer descontos para a Segurança Social e pagar um "seguro de desemprego". E não terá direito à quantia que lhe é dada para pagar a renda. Nem poderá continuar a levar o seu filho à creche gratuitamente. O que, muito provavelmente, a atirará para a miséria.
A. sabe: trabalho significa o fim do Estado social. Trabalho significa miséria. Por isso, A. continua a passar os dias em aulas de alemão, ou noutra coisa qualquer, à espera que ninguém a chame do centro de emprego.

segunda-feira, agosto 16, 2004

Próxima grande manchete

Segredo de Justiça é roto

Da série, era uma vez...

Era uma vez um lugar onde nasceram dois lados de um muro.
Não foram feitos por um arquitecto, foram feitos por um político.
Não mediram forças com a natureza, mediram forças com a natureza humana.

Real Politik


"Na manhã bem cedo do dia 13 de agosto de 1961, a população de Berlim, próxima da linha que separava a cidade em duas partes, foi despertada por barulhos estranhos, exagerados. Ao abrirem as suas janelas, depararam-se com um inusitado movimento nas ruas à sua frente. Vários Vopos, os milicianos da RDA (República Democrática da Alemanha), a Alemanha comunista, com os seus uniformes verde-ruço, acompanhados por patrulhas armadas, estendiam de um poste a outro um interminável arame farpado que se alongou, nos meses seguintes, por 37 quilómetros adentro da zona residencial da cidade. Enquanto isso, atrás deles, trabalhadores desembarcavam dos camiões descarregando tijolos, blocos de concreto e sacos de cimento. Enquanto alguns deles feriam o duro solo com picaretas e britadeiras, outros começavam a preparar a argamassa. Assim, do nada, começou a brotar um muro, o pavoroso Mauer, como o chamavam os alemães."


Classificação: 9/11

Fui ver Fahrenheit 9/11.
Divido-me entre um 9, porque nalguns aspectos o documentário (e será mesmo disso que se trata?) é fraco, não pode passar, e um 11, porque nalguns aspectos o filme (que às vezes é quase um documentário) é sofrível, mas inspirado. Como na utilização da música de Vasks, do Concerto para Violino (Distant Light), para acompanhar o momento do ataque às torres.
O resto, enfim, é o que se sabe: há ligações que são insinuadas e há insinuações que são ligações. E depois há km de filme sobre coisa nenhuma, em que gratuitamente se explora uma mãe que perde um filho no Iraque.
Genial, genial, só mesmo o momento em que Michael Moore procura alistar os filhos dos Congressistas para servirem na guerra no Iraque...
Classificação: 9/11.

sexta-feira, agosto 13, 2004

O que quer isto dizer?

Interstícios, espaços em branco - afinal, o que é que isto quer dizer?

I. Os buracos nos sistemas
Quando comecei a aprender Kant, mergulhando no complexo sistema das faculdades, que lia na Crítica da Razão Pura debaixo dos olhos austeros de um magnífico professor, perguntei-me diversas vezes de onde vinha aquela espantosa capacidade de o entendimento receber dados da sensibilidade, de os esquemas da imaginação serem tão incrivelmente peças de um puzzle onde tudo parecia encaixar - e onde, afinal, para mim faltavam peças.
Sob pena de já ter perdido os meus dois leitores pelo caminho, continuo. A questão que se colocava era a de haver, por um lado, duas faculdades distintas em jogo (a sensibilidade e o entendimento), quando os dados da primeira eram matéria para a segunda. Que sentido fazia multiplicar as faculdades se elas se alimentavam do mesmo material? E tendo Kant introduzido a imaginação no interior deste processo, para de algum modo dar conta de uma diferença qualitativa mais ou menos obscura entre dados sensíveis e os mesmos dados sensíveis que teriam passado o crivo de esquemas da imaginação, tendo feito isto, não correria o perigo de começar a multiplicar exponencialmente todas as instâncias intermédias, as pontes que permitiam a esta "matéria bruta" circular de A para B, sendo a mesma e sendo diferente?
No fundo, o meu problema era o de compreender de que forma e por meio de que magia se faziam todas as passagens de um processo que nunca se deixava descobrir exactamente como Kant o descrevia. Esses eram, para mim, espaços em branco. Tal como o eram as próprias categorias do entendimento, as engrenagens de um sistema demasiado perfeito para admitir fissuras.

II. Engolir um sapo - ou das harmonias pré-estabelecidas
Chegada à Crítica da Faculdade de Julgar, a última e a mais profundamente obscura das críticas, não havendo possibilidade outra de encontrar soluções, foi o filósofo forçado a admitir uma concordância prévia entre o reino das causas e o reino dos fins, a famosa ideia da harmonia pré-estabelecida, que lhe permitia dançar livremente entre as críticas e as faculdades. Aí, tornou-se evidente que se tratava de uma necessidade extrínseca ao próprio processo que Kant parecia descrever. Uma ficção.
Note-se que a ficção é a forma própria da filosofia até ao séc. XX, pelo menos. E isso não traz em si mesmo qualquer problema. Antes pelo contrário, o sistema kantiano é uma ficção que deu e dá muito que pensar. E que organiza utopias e programas políticos, como o da paz perpétua ou o da união dos povos e das nações.
No entanto, esta ficção, estritamente enquanto tal, sofria da síndrome "queijo suiço" aos meus olhos. E isso feria-a de morte.

III. Descrever
O inventor da cronofotografia, Etiennes Jules Marey, era médico e procurava mapear a fisiologia e a fisionomia dos corpos em movimento. Do mais ínfimo ao maior, dizia. Criou então um sistema que lhe permitia, por meio da fotografia em movimento, encontrar todos os momentos do movimento, desenhando fenómenos que a câmara atestava e que, porém, os nossos olhos não conseguiam captar. O que Marey procurava eram os interstícios dos corpos em movimento. Esses espaços em branco que pareciam escapar-nos sempre. Descrever, fotografando ou filmando, uma realidade física como o movimento significava pois dar conta do real, de todo o real.
A Filosofia, no séc. XX, procura também radicar-se no lugar do cronofotógrafo, de algum modo, através da Fenomenologia. O "regresso ao fenómeno" e a "descrição" pareciam antídotos suficientemente fortes contra a tendência psicologista e pouco científica que grassava, pelo menos no entender do seu fundador, Edmund Husserl, matemático de profissão.
Curiosamente, a fenomenologia volta a tropeçar nos espaços em branco. Procurando descrever os fenómenos da percepção, por exemplo, a pretensa descrição contém novamente os problemas kantianos das pontes, das passagens, problemas esses que pareciam reconduzir-se ao tempo. É porque o presente não se pode definir como sequência que fenómenos como a percepção não podem ser descritos como "primeiro" e "depois". A descrição esbarra na alienação do tempo. E isso torna-a inverosímil. Tal como imagens em "slow motion" se revelam inteiramente novas, inteiramente diferentes daquilo que percepcionamos em "tempo real".

IV. Quantum leap
Havia uma série na televisão que tinha este título. Admitia a velha possibilidade de saltos no tempo, mas agora fazendo apelo à mecânica quântica de que ninguém sabe muita coisa e cuja verosimilhança, portanto, não iria ser posta em causa.
Mas o verdadeiro salto, o verdadeiro espaço em branco, continua na dimensão do tempo. Os romances fizeram-se por isso: forneceram modelos ou esquemas de integração de factos da vida. Factos que não tinham qualquer sentido. Que eram desprovidos de destino, de amor fati. Era porque a vida se tornava insuportavelmente fastidiosa, em tempos de paz e de relativa abundância, que era preciso entreter. O romance, porque toda a ficção é tendencialmente romanesca (e não sou eu que o digo, é Blanchot), tomava conta dessas almas desassossegadas e descontentes que não tinham mais que a sua colecção privada de factos mais ou menos desinteressantes.
Não quero com isto dizer que a narrativa seja uma invenção contemporânea do romance. Isso seria absurdo! O que quero dizer é que a forma do romance vem obviar às dificuldades destes espaços em branco que se tornam cada vez mais resistentes na filosofia como na vida. Os laços entre os factos. Os nós entre as vidas. É isto que os autores se encarregam de construir. Nalguns casos, genialmente.
Hoje, leio e releio continuamente as palavras do escritor Rui Nunes, esse meu professor de filosofia. A literatura encontra o seu lugar nas fissuras, nas ruínas, nos pedaços de vida de que todos somos feitos - e não procura reconstruir uma monumentalidade qualquer que tivesse sido perdida. Pelo contrário, a literatura, hoje, devolve-nos num ritmo lancinate e entrecortado os ecos desses fragmentos que resistem aos sistemas, às descrições, ou à inscrição no tempo. E se se trata de uma devolução, será que finalmente a ficção é a verdade?

Interstícios



Etienne-Jules Marey (1830-1904)
Inventor da cronofotografia

Ele disse mesmo isto???

Pedro Duarte [...] salientou a aposta no aproveitamento da "mais valia que é haver muitos jovens desempregados"[...]

quinta-feira, agosto 12, 2004

Pausa inter-semestral

I.
Foi tempo disso. De comer bolas de berlim. De me deitar numa toalha listrada como um tigre. A toalha, não eu. De ouvir o incessante quebrar das ondas. Do sol sobre a minha pele. Do mar frio nas minhas costas. Da areia secreta por entre os dedos dos pés. Do guarda-sol ao meu ombro. Do creme no meu saco gigante de transportar tudo. De um livro cheio de areia dentro da lombada. De pôr um bikini colorido e ser igual a toda a gente. De andar pela vila com sapatos impróprios.
II.
E também de ver a serra encobrir-se. De escuro e medo à noite. De nuvens. O céu abrir-se e ser fresco. De ladrar de cães em plena madrugada. De uivar de cães ao som da sirene dos bombeiros. De ler o jornal como se fosse do estrangeiro. O jornal, não eu. De pedir bicas. De fazer trocadilhos com facilidade e gosto. De comer travesseiros e barquinhos de ovos. De ver uma mulher corajosa a gritar directamente para a gula, acerca de umas bolas de berlim. Ou de línguas da sogra. Em plena areia.
III.
É tempo disto. De abastecer o frigorífico. Onde jazem restos mortais irreconhecíveis de coisas que não me lembro de ter comprado. De abrir as janelas durante a noite para arrefecer a casa. De aprender a suportar temperaturas de 39 ou 40 graus. Que batem nos vidros. Que passam as cortinas. Que invadem a casa. Que sufocaram as plantas. Que não trazem mar. Que não são de praia. Que não têm humidade. Que oscilam entre o chão e o capacete de nuvens. Que não circulam. Que não mexem.
IV.
E também de me habituar ao café com k. Que não é bem café. De sorrir sem perceber nada. De sorrir porque ninguém percebe nada. De tentar articular todas as sílabas. De aprender a saborear palavras desconhecidas. De vir para dentro. De fechar as janelas. De matar mosquitos. De afagar cabelos. De afugentar medos. De voltar sempre para trás. De repetir remember? De cozinhar. De berlinar.
V.
E o tempo chega em que se espera que trate disto. De escrever uma tese. De não destruir uma relação. De me integrar num país. De domar uma língua. De emagrecer e fazer ginástica. De sorrir muito. De escrever muito. De escrever bem. De esquecer tudo. De me organizar. De me desorganizar. De ver. De sobreviver. De escrever uma tese. De escrever uma tese.

quarta-feira, agosto 11, 2004

Do atraso português

Já li e ouvi muito sobre as famigeradas cassetes do jornalista do Correio da Manhã. A única coisa que ainda não ouvi é um comentário profundo sobre o atraso do meio...sim, sim.
Mas quem é que ainda usa cassetes???

sillysillysilly

O mais terrível da silly season é que acaba depois das nossas férias.

And the winner is...

...the bronze!

segunda-feira, agosto 02, 2004

Horóscopo

Neste Verão, não faça azelhices. Isso pode sair-lhe caro.


A tenaz

A tenacidade é avançar, mesmo sem saber para onde. E isso ser bom.
Ou não.

Enigmas de Verão ou sopa de cação

Uma lua cheia
dois corações dependurados
e um corpo.


Dr. Jay's